segunda-feira, 5 de novembro de 2012

VISTE MEU FILHO JEREMIAS?

(ARIMATEA COELHO)

No povoado São José, antigo Engenho do Mearim, muitas histórias são contadas nas noites de lua cheia, quando os habitantes dali se reúnem no terreiro das casas para troca de conversa fiada. Noites em que as meninas do povoado, de mãos dadas, nos terreiros das casas, cantam lindas cantigas de roda que aprenderam com as irmãs mais velhas. Nesses instantes, suas vozes se derramam alegres sobre a vasta solidão daquelas paragens. O rio para, de repente, o fluir das suas águas mansas, a mãe d’água emerge das profundezas do rio, vem para o porto do povoado, senta-se num velho tronco de madeira que a maré trouxe até ali, e nuinha, sem qualquer coisa que lhe encubra a perfeição do corpo, fica horas inteiras, iluminada pelo clarão prateado da lua, com os cabelos longos e negros, brilhantes como a seda mais pura, os olhos escuros como os mistérios das águas, a escutar, mergulhada numa espécie de melancolia, as vozes encantadoras das meninas cantando cantigas inocentes que se eternizaram pela beleza que delas emanam com força grandiosa como a força das marés.

Muitas histórias bonitas de amor são contadas nessas noites enluaradas do povoado. Mas, história igual à história de Maria das Dores e Baltazar nunca se ouviu contar por aquelas bandas. Apesar do drama que a envolveu e da proibição que lhe foi imposta, a história de Maria das Dores e de Baltazar venceu os tempos. Chegou até nossos dias pela boca dos que moram em São José, onde os moradores afirmam convictos que, durante as noites escuras, escutam gritos de dor, estalar de açoites ao logo da única rua do povoado, cujas casas acompanham o curso do rio, como se relutassem em tomar outro rumo, como em direção ao mato sombrio, onde jazem as ruínas do antigo Engenho do Mearim. Dizem os moradores de São José, que, ainda hoje, quando alguém passa por ali, fora de hora, vê o negro Baltazar que, se esgueirando entre os escombros do velho engenho, gemendo, a derramar sangue dos olhos, foge entre as árvores, perseguido pelo seu passado, carregando consigo uma terrível dor e uma imensa tristeza no coração.

*** 
 Casada com o conceituado médico Raimundo de Meireles, de importante família do Mearim, dona Bárbara, a irmã de Manoel Soares, morava na Rua da Estrela, num sobrado com janelas de vidro, com fachada imponente de azulejos, portas e janelas de cedro encimadas por lavores talhados em pedra de cantaria. Manoel Soares encaminhou sua filha para morar nessa casa, onde ficaria encerrada, proibida de mostrar-se a quem quer que fosse para que ninguém tomasse conhecimento da vergonha que ela praticara com o Negro Baltazar, no Engenho do Mearim jogando na lama o nome de toda a família. Das Dores foi bem recebida por dona Bárbara que a cercou de cuidados excessivos nos primeiros dias. Mas não custou muito para dona Bárbara mostrar a verdadeira face da arrogância, do preconceito e da maldade que se escondia por trás daquela máscara de bondade com que, à primeira vista, era capaz de enganar a qualquer um, sem demonstrar remorso na alma. Das Dores tornou-se uma simples agregada da casa, lavando, engomando, espanando móveis e lustrando diariamente o chão que dona Bárbara e o Doutor Meireles escarravam. Nove meses depois da sua chegada naquela casa, Das Dores sentiu os primeiros sinais de parto. Uma parteira do interior de São Luís foi chamada para fazer-lhe o parto no quarto que a tia lhe reservara para morar. Quando Jeremias nasceu, a parteira benzeu-se dissimuladamente, torceu o rosto, com repulsa à cor trigueira do menino. Maria das Dores olhou para o filho com amor, e sorriu de felicidade para aquela criancinha que saia das suas entranhas para a luz da vida. Nesse período, atormentado pelas visagens do Negro Baltazar, que vivia aparecendo nas imediações do engenho, ao meio dia, ou durante as noites, derramando sangue dos olhos, da mesma forma como fora deixado na mata para morrer devorado pelos animais selvagens da região, Manoel Soares abandonou por completo o seu Engenho do Mearim e voltou para São Luís, onde montou casa de importação de gêneros alimentícios no início da Rua do Sol, em cujo prédio, no andar superior, passou a morar com a esposa, sem ao menos falar no nome da filha Maria das Dores. Certo dia de domingo, ao anoitecer, após gastar alguns minutos no banheiro aparando barba e bigode, Manoel Soares vestiu-se com rigor, apertou com cuidado o nó da gravata, e deixou a casa despreocupadamente. Andou por algumas ruas de São Luís para chegar à belíssima casa de Bárbara, sua irmã, onde bateu palmas.

Na cozinha, Maria das Dores escutou perfeitamente as palmas e teve um pressentimento ruim. Correu para o quarto, onde dormia com o filho, envolvendo-o com os braços, como se quisesse protegê-lo de um perigo iminente. O coração bateu descontrolado no peito quando ouviu os guizos da porta se abrindo. Dona Bárbara veio receber o irmão. - Sente-se. Vamos conversar um pouco. - Disse dona Bárbara, para o irmão, já na sala de estar, apontando para um assento colocado junto à parede. - Obrigado! – Disse Manoel Soares, sentando-se na cadeira confortável. - Que ventos bons o trazem até minha casa, Manoel? – Perguntou, sorrindo, dona Bárbara. - Chegou a hora. – Respondeu Manoel Soares, peremptoriamente. Dona Bárbara e o irmão conversaram bastante tempo sobre amenidades, até que ela chamou por uma empregada, ordenando que trouxessem Maria das Dores até a sala. Maria das Dores apresentou-se diante do pai, pediu a bênção, com a cabeça baixa. Vergonha não sentia do que acontecera, mas baixava os olhos, não encarava o pai com receio da sua ira, se bem que ela gostaria de contrariá-lo naquele momento para romper com aquele medo que sentia do pai. Entretanto, manteve-se calada. - Amanhã meu amigo Pedro Serapião de Coêlho virá buscar teu filho. – Disse Manoel Soares, para a filha. – Ele será criado em sua fazenda no Itapecuru. Já acertei tudo. Das Dores não disse nada. Ela já sabia que isso poderia acontecer mais cedo ou mais tarde. Não adiantaria opor-se à vontade do pai. Mas se alguém olhasse diretamente para seu rosto, veria uma lágrima de dor escorrendo lentamente dos seus olhos para o chão. - Agora tu podes voltar para casa. Acho que aprendeste a lição. – concluiu Manoel Soares, e, voltando-se para a irmã: - Ficarei eternamente agradecido pelo ajuda que me deste aceitando Maria das Dores em tua casa. Somente Deus poderá te dar a recompensa. - Oh! Não há de quê, Manoel! Nesta casa, somos felizes por isso. O Meirelles e eu amamos Das Dores como filha. Não é mesmo Das Dores? - Das Dores não respondeu. Sentia vontade de vomitar com tamanha falta de vergonha da tia. O desabafo foi uma cartilha de palavrões insultuosos que ela proferiu intimamente. *** Pedro Serapião de Coêlho e sua mulher foram buscar o filho de Das Dores no outro dia, levando-o para o Itapecuru. Das Dores voltou a morar com o pai, que a encerrou em um dos quartos da sua casa, sem direito a mostrar o rosto na janela. *** No povoado São José, antigo Engenho do Mearim, nas noites de lua cheia, quando seus moradores se reúnem no terreiro das casas, as meninas cantam, de mãos dadas, lindas cantigas de roda que aprenderam com as irmãs mais velhas. Nesses momentos, o rio para de repente o fluir de suas águas como que encantado. A mãe d’água emerge das profundezas, vem para o porto do povoado, senta-se num tronco de madeira que a maré trouxe até ali, ficando horas inteiras, iluminada pelo clarão prateado da lua, os cabelos longos e negros, brilhantes como a seda mais pura, os olhos escuros como os mistérios das águas, a escutar, mergulhada numa espécie de melancolia, aquelas cantigas inocentes que saem das bocas ainda virgens das meninas do São José. Cantigas que esvoaçam sobre a solidão da paisagem, às vezes, como algazarra de dias de festa; às vezes, como um lamento de dor e de saudade. Nessas noites enluaradas do povoado, muitas cantigas bonitas e muitas histórias de amor são contadas nas portas das casas que acompanham o curso do rio. O velho Marculino Santana, de quase cem anos, é pessoa que infunde respeito ao abrir da boca. Conhecimentos da história e sabedoria da vida não lhe faltam. Ele sabe contar histórias como ninguém. Sobre o Mearim, ele sabe tudo. Conhece as histórias mais novas. As mais antigas, é como se ele as tivesse vivido. Não titubeia no seu falar. Sua voz não treme, não falseia. Quem o ouve, fica logo sabendo que ele navegou por demais nestas águas abençoadas por Deus, ora, em embarcações movidas a vapor; ora, nessas lanchas modernas, ligeiras, barulhentas, movidas a motor, invenção da modernidade, do homem insensível, tocado pelo mal da pressa, que perdeu os olhos na aspereza dos dias, que já não sabe admirar as cores e as belezas de todas as margens, e que, para viver, parece ter criado asas velozes, ao invés de ter criado raízes profundas. Sobre o Mearim, o velho Marculino sabe tudo. Do desaparecimento dos índios Tapuias da região, caçados e assassinados a tiros de espingardas, para que se pudesse instalar nestas terras o sorriso da civilização, ao drama de Maria das Dores e do Negro Baltazar. Ele nos contou sobre este drama pungente, para mim e para muitos que estavam sentados à sua porta, enquanto bebericávamos um delicioso café. Pedro Serapião de Coêlho perfilhara o mulato Jeremias com o nome de Balbino Serapião de Coêlho, e o mandara para estudar em Olinda. Formado em Ciências Jurídicas e Sociais, passou a morar no Rio de Janeiro, então capital do país, onde brilhou como um dos melhores advogados do Estado, constantemente figurando nas primeiras páginas das manchetes dos jornais cariocas, nas primeiras décadas do século XX. Mas, Balbino Serapião, o filho de Das Dores e do Negro Baltazar, não permaneceria o restante da sua vida no Rio de Janeiro. Um dia, não compareceu ao seu escritório, na Rua do Ouvidor, onde dava expediente todos os dias. Desaparecera da capital brasileira, sem deixar notícia, nem descendência. Para muitos, fora assassinado. Tivera o corpo esquartejado, colocado em uma caixa de madeira e enterrado em local ignorado. Para outros, encontrara ouro enterrado no quintal da sua casa, onde havia enorme buraco escavado, fugindo após com o ouro encontrado para um país qualquer da América Latina. Talvez até para a Europa. Outros, ainda, afirmavam que ele fora visto desfilando despreocupadamente com uma mulher encantadora pelas areias da Praia de Ipanema. Conforme Marculino Santana, o filho de Das Dores teria sido morto a tiros no município de Cárceres, no Estado do Mato Grosso, num confronto das Forças Legais com o grupo liderado por Luiz Carlos Prestes, ocasião em que passavam por ali, em busca de refúgio na Bolívia.

Quanto a Maria das Dores, já idosa, depois de ler um desses jornais, no qual havia uma imagem litografada do Doutor Balbino Serapião de Coêlho, ao lado da qual constava farta matéria sobre o eminente bacharel desaparecido, começou a chorar copiosamente, ensopando com lágrimas as páginas do semanário carioca, enquanto se embalava em uma cadeira, no quarto da casa que lhe ficara como herança. A figura do Doutor Balbino Serapião lembrava a do seu filho Jeremias. Depois disto, Maria das Dores nunca mais se comportou como uma pessoa normal. Certo dia ela fugiu de casa. Passou a ser vista pelas ruas de São Luís perguntando - com verdadeira aflição na voz - às pessoas que por ela passavam: - Diz-me: viste meu filho Jeremias? - E mostrava para o transeunte um amarelado recorte de jornal com a imagem de Balbino Serapião de Coêlho. - Viste meu filho Jeremias?

2 comentários:

  1. Arimatea Leite Coelho é o bardo que habita as margens do Rio Mearim e de lá escreve seus poemas e textos em prosa que nos comovem, tocam nossa alma e espalham as lembranças e belas imagens da nossa querida terra pelos cantos do mundo.É um privilégio fazer parte da geração de um poeta denso, de um lirismo tão bem trabalhado pelo seu talento de literato autêntico. Parabéns!

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  2. Que tamanha sensibilidade! Após ler o texto, senti cheiro de minha terra...

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