segunda-feira, 19 de novembro de 2012

MILAGRE DE SÃO BENEDITO

O corpo da pobre lavadeira Maria Jovita havia sido levado, na véspera, para o cemitério, por um carro mortuário da Santa Casa, deixando ali, naquela situação aflitiva, aquela pretinha de cinco anos, herdeira triste, e inocente, da sua cor e do seu destino. Atirada para o corredor do casarão, a pequenita passara uma noite encostada à parede, agasalhando-se como lhe era possível nos farrapos da camisinha de riscado grosseiro; uma vizinha de quarto condoeu-se, porém, da sua sorte, sendo a pretinha recolhida, então, por misericórdia, como um cão sem préstimo que se apanhasse piedosamente na rua.

Dois dias após a sua orfandade, era o dia dos mortos, como o de hoje. E como toda a gente, na casa de cômodos, se encaminhasse para o cemitério, em visita aos seus defuntos não esquecidos, a pequenita Carlota acompanhou-os, ferindo os pés descalços no pedroiço do calçamento, e recebendo na carapinha descoberta, enroscada no couro da cabeça, toda a inclemência daquele horrível sol de verão. Chegada ao cemitério, perguntou a negrinha, medrosa: - Onde está minha mãe? As pessoas que tinham ido ao enterro da Maria Jovita indicaram-lhe um monte de terra fresca, molhada ainda, à cabeceira da qual a pequena se ajoelhou, juntando, numa prece fervente, os dois carvãozinhos das mãos. E estava ela sozinha, nessa postura, no silêncio daquela quadra abandonada, destinada aos humildes, aos desamparados, aos náufragos da vida e da morte, quando ouviu uma voz, que a chamava: - Carlotinha? A pretinha voltou-se, espantada, e sorriu, enxugando os olhos úmidos com as costas das mãozinhas encarvoadas: atrás dela, sorrindo-lhe com bondade, com doçura, com meiguice, estava, em ponto grande, do tamanho de uma pessoa, com a mesma cor, a mesma aureola e o mesmo burel, a imagem do senhor São Benedito, que sua mãe, quando viva, possuía no quarto, no oratório de uma pequena caixa de papelão! - Meu São Benedito!... - gemeu a pequena, atirando-se ao solo, e beijando-lhe, comovida, a fímbria do manto escuro. E ia juntar as mãos para rezar, quando o santo lhe ordenou, paternal: - Carlotinha, junta estas pedras. A pretinha arrepanhou quanto pôde as pontas do vestidinho roto, e pôs-se a apanhar, um por um, os seixos miúdos que havia pelo chão, entre as sepulturas sem nome. E assim que enchia o regaço, despejava os calhaus, a mandado do santo, sobre o monte de terra que assinalava, naquele oceano de túmulos, o lugar em que sua pobre mãe dormia para sempre. De repente, cansadinha já daquela faina, a pretinha ouviu chamar, de longe, pelo seu nome: - Carlota? E como não respondesse, de fatigada, as pessoas da casa de cômodos foram à sua procura, até que, encontrando-a, recuaram, maravilhadas. Diante da pretinha, que orava de joelhos, a sepultura rasa de Maria Jovita, um simples cômoro de areia, desaparecia, toda ela, sob um monte de rosas! DE (HUMBERTO DE CAMPOS)

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Pequeno engano

    A Iza era linda e gostosona. De pequeno, só o nome. Pai do céu, sua dentadura parecia ter o dobro de dentes! Gargalhava alto, praticamente o dia inteiro. Levava a vida na base da gandaia. E a bunda? A bunda de Iza deveria ser considerada patrimônio da humanidade. Um fenômeno! Não estou a brincar. É verdade! Baiana de Itapetinga, mulher de militar transferido, gabava-se ao dizer que morava na Vila dos Oficiais. O endereço era motivo de orgulho. Afinal, numa cidade pequena, pobre, sem esgoto, sem asfalto, a vila da Iza era a própria Av. Atlântica, no Rio, ou a Av. Paulista, em São Paulo (claro!). Uma vez, invocada com essa mania de tanto falar bem da Vila dos Oficiais, ousei perguntar: - Ô Iza, essa vila tem ruas ladrilhadas com pedrinhas de brilhantes? - Não, minha filha, mas tem cada homão!!! Ia eu sair da Bahia, da minha Itapetinga, para morar em qualquer lugar? - Sim, mas o teu marido também é um homão! Precisas de mais? -Lá são muitos, baby, numa vilinha de nada. A cidade inteira não tem nem a metade. É um deslumbre, minha filha, é um deslumbre! - Entendi. - Já visse os olhos do Comandante Agenor? Visse, negona? - Realmente, tens muita razão, são verdes e lindos. Do que sempre soube, Iza e seu "benzin" viviam em plena felicidade. O capitão tinha lá suas durezas e seriedades próprias da farda, mas, Iza, sem meninos para atazanar, dedicava-se a zelar os jardins da vila para se ocupar com alguma coisa. Tarefa amena e colorida. Nesse cotidiano agradável, cercada de homãos por todos os lados, absorvendo flores por todos os sentidos, que motivos poderia ter para ser triste? Certo dia fui procurada por Iza. Queria uns conselhos. Estava meio sem graça, capionga e um tanto enfarruscada. - Olhe, amiga, aconteceu um negócio chato e meu "benzin" tá até falando em separação. É que a pia lá de casa entupiu e pedi pra ele tentar resolver a situação. - Hum, e o que há de errado nisso? - É que deixei ele tentando arrumar os canos e saí para ver o jardim da Flávia. Plantei um pé de cajado de São José e tava doidinha pra ver se tinha pegado. - Então, o homem ficou aborrecido por teres ido bater pernas na costeira? - Não, escuta. Deixa pra fazer perguntas só no final. Pois bem, quando voltei pra casa, ainda estava lá, olhando pra debaixo da pia, de bunda pra cima e, para fazer uma gracinha com meu bem, vim devagarinho, meti a mão nos ovos dele, garrei com cuidado e perguntei: cadê os coquinhos de mainha? - Porra, mulher, o homem deve ter tomado um susto danado! - Espera, foi isso não! Não era o benzin. Tu sabes que aquele povo anda tudo de camiseta branca e calção azul e eu pensei que fosse ele. Lembrando da situação, caiu na gargalhada, mas logo voltou a ficar séria. - E quem era, criatura? - Mulher, nem te conto. Era o comandante Agenor. Quase eu morro! Minhas Santas Almas Vaqueiras! O homem olhou para minha cara, queria rir mas não queria, sabe como é? Depois, só pra não perder a moral, falou que ia contar para o "benzin". Eu tenho culpa, mulher, se pelas costas eles serem tão parecidos? quase iguais? Tenho? - Claro que não! E o que você disse? - Pedi desculpas, mas ficou o clima ruim. Quando contei pro filhinho, a princípio ele não se mostrou com raiva, e explicou o sucedido. Agenor tinha se prontificado a ajudar no desentupimento daquela joça e ele, meu mozinho, saiu para comprar uma conexão de não sei o quê, de meia polegada, essas coisas de encanação, sabes? - Iza, qual a razão do teu marido ter ficado aborrecido, mesmo sabendo que foi um engano? - Imagina, só porque eu disse que os coquinhos de mainha do comandante eram maiores e mais durinhos!!! Imagina, santinha, não é uma besteira? - É... claro que é... É? Tempos atrás encontrei Iza e seu "benzin" passeando na praça, tomando sorvete de bacaba. Fiz festa. Demonstrei satisfação em vê-los juntos. Enquanto ele foi comprar mais um gelado, lembrei dos coquinhos de mainha e aconselhei a doida a não mais mexer com os brios do capitão. Me diz a safada, toda reboculosa: - Mexo mais não. Agora, minha deusa, que os de Agenor eram maiores e mais durinhos, eram sim! Acho que os coquinhos de painho sempre foram desunerados... A gargalhada escandalosa ecoou na praça, atraindo olhares. Hora de sair de fininho. - Tchau, Capitão. Tchau, Iza. Tchau. - Tchau! Leila Jalul, procuradora aposentada da Universidade Federal do Acre. Autora de Suindara (Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora LTDA, 2007) e Absinto Maior (2007)

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Peri Gomes Feio, o poeta que o povo esqueceu

          Cristóvam Dutra Martins, advogado provisionado, ex-prefeito de Vitória do Mearim, já falecido, era admirador incondicional dos grandes poetas brasileiros. Destes, recitava poemas inteiros sem esquecer uma palavra. Dos seus prediletos, ele sempre recitava “Versos Íntimos”, de Augusto dos Anjos, e sempre fazia confusão com a autoria do soneto “Samaritana”, de Vespasiano Ramos, que ele atribuía a Peri Gomes Feio, provavelmente porque Peri - o mais sofrido e martirizado de todos os poetas brasileiros - andou sem descanso por estas paragens do Mearim, carregando seu sofrimento com resignação, lembrando, em sua dor, o sofrer do andarilho dos versos de Vespasiano: “Venho, de longe, trêmulo, bater,/à vossa humilde e plácida cabana/ pedindo alívio para o meu viver”. Nascido em Rosário - MA, em 04.08.1909, e falecido em São Luís, em data indeterminada, Peri Gomes Feio era excelente poeta e orador. Um artista na verdadeira acepção da palavra.
         Mas Peri sofria do mal-de-lázaro, doença perigosa, que não tinha cura e que causava verdadeiro pavor, pela facilidade do seu contágio. No período em que Peri Gomes Feio esteve em Vitória do Mearim (1955), os leprosos eram estigmatizados ao extremo. E não exagero ao dizer que, um pouco antes, quando morriam, não eram enterrados no mesmo cemitério em que se enterravam as pessoas comuns da cidade. Seus pertences eram queimados e o local onde eles moravam (geralmente afastado e ermo) era expurgado com sal, apagando-se para sempre a lembrança dos mesmos da memória dos vivos. Peri era um homem deformado fisicamente. A terrível doença destruíra-lhe todos os dedos das mãos e dos pés. Seu corpo, ulcerado e malcheiroso, causava repugnância às pessoas. Cristóvam Dutra Martins conheceu Peri Gomes Feio nesse ano, durante os festejos da padroeira de Vitória do Mearim. O poeta chegara naquela manhã de setembro, proveniente de São Luís, quando os fiéis católicos deixavam a igreja, após terem assistido a Santa Missa.
          O poeta, montado no jumento que o conduzira pela dificílima estrada maranhense, encontrava-se à frente da igreja, provavelmente rogando à Virgem de Nazaré um pouco de “alívio” para seu viver. Ao verem-no em condições totalmente deploráveis, as roupas desgrenhadas, manchadas com a secreção fétida que fluía das suas feridas, as pessoas logo se afastaram aterrorizadas. O poeta notara a repulsa dos vitorienses. E, pacientemente, desceu do seu jumento, subiu na calçada da igreja com dificuldade, e, como um líder iluminado pelo dom da palavra, proferiu um comovente discurso, que falava da sua dor, da sua solidão e tristeza, da sua infortunada e miserável vida. As pessoas, que deixavam o local, se aproximaram para ouvi-lo, como se, de repente, a lepra, que causava repulsa, não existisse mais no corpo ulcerado do poeta. Muitos derramaram lágrimas de pesar ao ouvirem-no falar, e até jogaram esmolas para o vate miserável. Depois disto, ele montou novamente em seu jumento, deixando os moradores de Vitória em verdadeiro estado de comoção.
        Cristóvam Dutra Martins intensificou sincera relação de amizade com o poeta durante o ano de 1955, em São Luís, indo, por diversas vezes, visitá-lo no Bonfim, local onde os leprosos da capital maranhense viviam recolhidos. Em janeiro de 1956, o jornal O Mearim em Folha, órgão oficial de divulgação da União Vitoriense dos Estudantes, edição nº 01 (São Luís - MA.), publica uma nota, com os seguintes dizeres: “Avisamos aos leitores de “O Mearim em Folha” e, especialmente, àqueles que tomaram assinatura do livro ”FARRAPO’”, da autoria de IUSSERIP, poeta homiziado no Bonfim, que por todo este mês de fevereiro este livro literário sairá do prelo. Agradecemos a boa vontade daqueles que, reconhecendo a necessidade de um doente, o qual não obstante, possui uma alma limpa, sadia e iluminada, - alma de poeta, adquiriram uma assinatura do seu livro (...)”.
         Como vimos, parece que os editores do jornal queriam esconder a identidade do poeta, usando a palavra IUSSERIP, como se ele carregasse no próprio nome a doença que trazia no corpo.
        Cristóvam Dutra Martins, o prefeito que adorava poesia e fazia confusão quando tinha que citar autores, dizia-me, ao referir-se a Peri Gomes Feio, que ele havia cumprido sua missão naquela manhã de setembro em que visitara Vitória do Mearim, ao dizer, em seu discurso, que o preconceito era a verdadeira e mais cruel de todas as lepras, pois destruía a humanidade de forma implacável, tornando-a tão perversa e deformada que dificilmente alguém conseguia ver-lhe a própria alma.
         Do poeta Peri Gomes Feio, o Maranhão pouco sabe. O que ele publicou - na verdade, testamento contundente e sem fingimento de dores e de saudades por ele realmente vivenciadas - ficou esquecido até hoje. Seus versos não são lembrados. E sua figura, deformada pela doença que o afligia, parece que foi eliminada para sempre da memória das pessoas que o conheceram. Que pena! (ARIMATEA COELHO)

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

VISTE MEU FILHO JEREMIAS?

(ARIMATEA COELHO)

No povoado São José, antigo Engenho do Mearim, muitas histórias são contadas nas noites de lua cheia, quando os habitantes dali se reúnem no terreiro das casas para troca de conversa fiada. Noites em que as meninas do povoado, de mãos dadas, nos terreiros das casas, cantam lindas cantigas de roda que aprenderam com as irmãs mais velhas. Nesses instantes, suas vozes se derramam alegres sobre a vasta solidão daquelas paragens. O rio para, de repente, o fluir das suas águas mansas, a mãe d’água emerge das profundezas do rio, vem para o porto do povoado, senta-se num velho tronco de madeira que a maré trouxe até ali, e nuinha, sem qualquer coisa que lhe encubra a perfeição do corpo, fica horas inteiras, iluminada pelo clarão prateado da lua, com os cabelos longos e negros, brilhantes como a seda mais pura, os olhos escuros como os mistérios das águas, a escutar, mergulhada numa espécie de melancolia, as vozes encantadoras das meninas cantando cantigas inocentes que se eternizaram pela beleza que delas emanam com força grandiosa como a força das marés.

Muitas histórias bonitas de amor são contadas nessas noites enluaradas do povoado. Mas, história igual à história de Maria das Dores e Baltazar nunca se ouviu contar por aquelas bandas. Apesar do drama que a envolveu e da proibição que lhe foi imposta, a história de Maria das Dores e de Baltazar venceu os tempos. Chegou até nossos dias pela boca dos que moram em São José, onde os moradores afirmam convictos que, durante as noites escuras, escutam gritos de dor, estalar de açoites ao logo da única rua do povoado, cujas casas acompanham o curso do rio, como se relutassem em tomar outro rumo, como em direção ao mato sombrio, onde jazem as ruínas do antigo Engenho do Mearim. Dizem os moradores de São José, que, ainda hoje, quando alguém passa por ali, fora de hora, vê o negro Baltazar que, se esgueirando entre os escombros do velho engenho, gemendo, a derramar sangue dos olhos, foge entre as árvores, perseguido pelo seu passado, carregando consigo uma terrível dor e uma imensa tristeza no coração.

*** 
 Casada com o conceituado médico Raimundo de Meireles, de importante família do Mearim, dona Bárbara, a irmã de Manoel Soares, morava na Rua da Estrela, num sobrado com janelas de vidro, com fachada imponente de azulejos, portas e janelas de cedro encimadas por lavores talhados em pedra de cantaria. Manoel Soares encaminhou sua filha para morar nessa casa, onde ficaria encerrada, proibida de mostrar-se a quem quer que fosse para que ninguém tomasse conhecimento da vergonha que ela praticara com o Negro Baltazar, no Engenho do Mearim jogando na lama o nome de toda a família. Das Dores foi bem recebida por dona Bárbara que a cercou de cuidados excessivos nos primeiros dias. Mas não custou muito para dona Bárbara mostrar a verdadeira face da arrogância, do preconceito e da maldade que se escondia por trás daquela máscara de bondade com que, à primeira vista, era capaz de enganar a qualquer um, sem demonstrar remorso na alma. Das Dores tornou-se uma simples agregada da casa, lavando, engomando, espanando móveis e lustrando diariamente o chão que dona Bárbara e o Doutor Meireles escarravam. Nove meses depois da sua chegada naquela casa, Das Dores sentiu os primeiros sinais de parto. Uma parteira do interior de São Luís foi chamada para fazer-lhe o parto no quarto que a tia lhe reservara para morar. Quando Jeremias nasceu, a parteira benzeu-se dissimuladamente, torceu o rosto, com repulsa à cor trigueira do menino. Maria das Dores olhou para o filho com amor, e sorriu de felicidade para aquela criancinha que saia das suas entranhas para a luz da vida. Nesse período, atormentado pelas visagens do Negro Baltazar, que vivia aparecendo nas imediações do engenho, ao meio dia, ou durante as noites, derramando sangue dos olhos, da mesma forma como fora deixado na mata para morrer devorado pelos animais selvagens da região, Manoel Soares abandonou por completo o seu Engenho do Mearim e voltou para São Luís, onde montou casa de importação de gêneros alimentícios no início da Rua do Sol, em cujo prédio, no andar superior, passou a morar com a esposa, sem ao menos falar no nome da filha Maria das Dores. Certo dia de domingo, ao anoitecer, após gastar alguns minutos no banheiro aparando barba e bigode, Manoel Soares vestiu-se com rigor, apertou com cuidado o nó da gravata, e deixou a casa despreocupadamente. Andou por algumas ruas de São Luís para chegar à belíssima casa de Bárbara, sua irmã, onde bateu palmas.

Na cozinha, Maria das Dores escutou perfeitamente as palmas e teve um pressentimento ruim. Correu para o quarto, onde dormia com o filho, envolvendo-o com os braços, como se quisesse protegê-lo de um perigo iminente. O coração bateu descontrolado no peito quando ouviu os guizos da porta se abrindo. Dona Bárbara veio receber o irmão. - Sente-se. Vamos conversar um pouco. - Disse dona Bárbara, para o irmão, já na sala de estar, apontando para um assento colocado junto à parede. - Obrigado! – Disse Manoel Soares, sentando-se na cadeira confortável. - Que ventos bons o trazem até minha casa, Manoel? – Perguntou, sorrindo, dona Bárbara. - Chegou a hora. – Respondeu Manoel Soares, peremptoriamente. Dona Bárbara e o irmão conversaram bastante tempo sobre amenidades, até que ela chamou por uma empregada, ordenando que trouxessem Maria das Dores até a sala. Maria das Dores apresentou-se diante do pai, pediu a bênção, com a cabeça baixa. Vergonha não sentia do que acontecera, mas baixava os olhos, não encarava o pai com receio da sua ira, se bem que ela gostaria de contrariá-lo naquele momento para romper com aquele medo que sentia do pai. Entretanto, manteve-se calada. - Amanhã meu amigo Pedro Serapião de Coêlho virá buscar teu filho. – Disse Manoel Soares, para a filha. – Ele será criado em sua fazenda no Itapecuru. Já acertei tudo. Das Dores não disse nada. Ela já sabia que isso poderia acontecer mais cedo ou mais tarde. Não adiantaria opor-se à vontade do pai. Mas se alguém olhasse diretamente para seu rosto, veria uma lágrima de dor escorrendo lentamente dos seus olhos para o chão. - Agora tu podes voltar para casa. Acho que aprendeste a lição. – concluiu Manoel Soares, e, voltando-se para a irmã: - Ficarei eternamente agradecido pelo ajuda que me deste aceitando Maria das Dores em tua casa. Somente Deus poderá te dar a recompensa. - Oh! Não há de quê, Manoel! Nesta casa, somos felizes por isso. O Meirelles e eu amamos Das Dores como filha. Não é mesmo Das Dores? - Das Dores não respondeu. Sentia vontade de vomitar com tamanha falta de vergonha da tia. O desabafo foi uma cartilha de palavrões insultuosos que ela proferiu intimamente. *** Pedro Serapião de Coêlho e sua mulher foram buscar o filho de Das Dores no outro dia, levando-o para o Itapecuru. Das Dores voltou a morar com o pai, que a encerrou em um dos quartos da sua casa, sem direito a mostrar o rosto na janela. *** No povoado São José, antigo Engenho do Mearim, nas noites de lua cheia, quando seus moradores se reúnem no terreiro das casas, as meninas cantam, de mãos dadas, lindas cantigas de roda que aprenderam com as irmãs mais velhas. Nesses momentos, o rio para de repente o fluir de suas águas como que encantado. A mãe d’água emerge das profundezas, vem para o porto do povoado, senta-se num tronco de madeira que a maré trouxe até ali, ficando horas inteiras, iluminada pelo clarão prateado da lua, os cabelos longos e negros, brilhantes como a seda mais pura, os olhos escuros como os mistérios das águas, a escutar, mergulhada numa espécie de melancolia, aquelas cantigas inocentes que saem das bocas ainda virgens das meninas do São José. Cantigas que esvoaçam sobre a solidão da paisagem, às vezes, como algazarra de dias de festa; às vezes, como um lamento de dor e de saudade. Nessas noites enluaradas do povoado, muitas cantigas bonitas e muitas histórias de amor são contadas nas portas das casas que acompanham o curso do rio. O velho Marculino Santana, de quase cem anos, é pessoa que infunde respeito ao abrir da boca. Conhecimentos da história e sabedoria da vida não lhe faltam. Ele sabe contar histórias como ninguém. Sobre o Mearim, ele sabe tudo. Conhece as histórias mais novas. As mais antigas, é como se ele as tivesse vivido. Não titubeia no seu falar. Sua voz não treme, não falseia. Quem o ouve, fica logo sabendo que ele navegou por demais nestas águas abençoadas por Deus, ora, em embarcações movidas a vapor; ora, nessas lanchas modernas, ligeiras, barulhentas, movidas a motor, invenção da modernidade, do homem insensível, tocado pelo mal da pressa, que perdeu os olhos na aspereza dos dias, que já não sabe admirar as cores e as belezas de todas as margens, e que, para viver, parece ter criado asas velozes, ao invés de ter criado raízes profundas. Sobre o Mearim, o velho Marculino sabe tudo. Do desaparecimento dos índios Tapuias da região, caçados e assassinados a tiros de espingardas, para que se pudesse instalar nestas terras o sorriso da civilização, ao drama de Maria das Dores e do Negro Baltazar. Ele nos contou sobre este drama pungente, para mim e para muitos que estavam sentados à sua porta, enquanto bebericávamos um delicioso café. Pedro Serapião de Coêlho perfilhara o mulato Jeremias com o nome de Balbino Serapião de Coêlho, e o mandara para estudar em Olinda. Formado em Ciências Jurídicas e Sociais, passou a morar no Rio de Janeiro, então capital do país, onde brilhou como um dos melhores advogados do Estado, constantemente figurando nas primeiras páginas das manchetes dos jornais cariocas, nas primeiras décadas do século XX. Mas, Balbino Serapião, o filho de Das Dores e do Negro Baltazar, não permaneceria o restante da sua vida no Rio de Janeiro. Um dia, não compareceu ao seu escritório, na Rua do Ouvidor, onde dava expediente todos os dias. Desaparecera da capital brasileira, sem deixar notícia, nem descendência. Para muitos, fora assassinado. Tivera o corpo esquartejado, colocado em uma caixa de madeira e enterrado em local ignorado. Para outros, encontrara ouro enterrado no quintal da sua casa, onde havia enorme buraco escavado, fugindo após com o ouro encontrado para um país qualquer da América Latina. Talvez até para a Europa. Outros, ainda, afirmavam que ele fora visto desfilando despreocupadamente com uma mulher encantadora pelas areias da Praia de Ipanema. Conforme Marculino Santana, o filho de Das Dores teria sido morto a tiros no município de Cárceres, no Estado do Mato Grosso, num confronto das Forças Legais com o grupo liderado por Luiz Carlos Prestes, ocasião em que passavam por ali, em busca de refúgio na Bolívia.

Quanto a Maria das Dores, já idosa, depois de ler um desses jornais, no qual havia uma imagem litografada do Doutor Balbino Serapião de Coêlho, ao lado da qual constava farta matéria sobre o eminente bacharel desaparecido, começou a chorar copiosamente, ensopando com lágrimas as páginas do semanário carioca, enquanto se embalava em uma cadeira, no quarto da casa que lhe ficara como herança. A figura do Doutor Balbino Serapião lembrava a do seu filho Jeremias. Depois disto, Maria das Dores nunca mais se comportou como uma pessoa normal. Certo dia ela fugiu de casa. Passou a ser vista pelas ruas de São Luís perguntando - com verdadeira aflição na voz - às pessoas que por ela passavam: - Diz-me: viste meu filho Jeremias? - E mostrava para o transeunte um amarelado recorte de jornal com a imagem de Balbino Serapião de Coêlho. - Viste meu filho Jeremias?

sábado, 3 de novembro de 2012

UM CASO DE AMOR NO ENGENHO MEARIM

Em uma canoa bem equipada, Manoel Soares deixou seu Engenho do Mearim rumando para São Luís, onde trataria de assuntos comerciais. Nesse dia, sozinha, e sem que alguém percebesse, Maria das Dores desceu pelas barrancas à beirada do rio, sentou-se em um tronco que a maré arrastara até ali, e ficou observando Baltazar que, mais adiante, pescava calmamente, como fazia em todos os dias de completo folgar.
Baltazar fora escravo daquele engenho, mas recebera carta de alforria no momento em que nenhum “sinhô” de engenho do Maranhão podia sustentar qualquer negro na condição de escravo, tamanha a campanha que se fizera pela abolição, movimento que recebeu apoio de vozes cadentes e denunciadoras de alguns poetas brasileiros, como Castro Alves, na Bahia, e Trajano Galvão de Carvalho, nascido nos arredores da Vila do Mearim - o primeiro a emprestar seu estro poético em favor da causa, elogiando a beleza da negra de “olhos de estrelas”, o destemor dos negros fugidos ou denunciando a triste e dolorosa condição do cativeiro, numa afronta aos poderosos que viviam do suor e do sangue alheios. Sozinho no mundo, sem proteção das leis, sem condição para viver em qualquer outro lugar, e não tendo para onde ir, Baltazar pedira a D. Euzébia, esposa de Manoel Soares, para continuar no engenho, na condição de empregado, recebendo um pequeno e miserável salário como paga pelo muito que fazia no dia-a-dia do engenho. No início da tarde, o tempo se arrastava tocado pela mansidão das horas modorrentas, e Maria das Dores, sentada ali, na beira do rio, observando o negro que pescava. O sol dardejava luminosidade sobre as águas, e sua luz radiante mexia com o corpo de Maria das Dores, fazendo com que ela sentisse estranhas ondas de calor. Com os pés dentro d’água, sentia o vento morno do início da tarde esvoaçando seus cabelos, o forte odor do suor do negro, e gostou. Via os músculos potentes dos seus braços, suas costas largas, a calça arregaçada até os joelhos deixando à mostra as batatas das pernas grossas e cheias de veias que pareciam saltar da pele negra e luzidia, e ficou como que extasiada, com o coração a lhe bater com força dentro do peito. O corpo do negro parecia com o corpo daquele príncipe de cabelos loiros e olhos azuis que certo dia despedira-se dos pais iniciando uma aventura, cujo objetivo era a conquista de terras distantes e de riquezas para seu reino, e de uma mulher bonita para seu coração. Cavaleiro valoroso dos contos de amor que a negra Gertrudes lhe contara nas noites daquele engenho. Com as mãos em forma de concha apanhou água do rio derramando-a sobre o rosto, fazendo com que o calor que sentia diminuísse. Depois, deixou rapidamente o local, envergonhada de si mesma e da tola comparação que fizera num ímpeto de descontrole, entre o empregado do engenho do seu pai e aquele príncipe corajoso e bonito, herói das histórias de conquista e amor da sua infância e da sua adolescência. Entretanto, o odor do suor de Baltazar não a deixou em paz acompanhando-a, entranhando em seu corpo, em seu vestido, em suas narinas, transformando-se numa verdadeira alucinação para ela. Certa noite até chegou a sonhar com Baltazar, que lhe sorria com os dentes alvos, enquanto caminhava na direção da sua cama, trazendo consigo o mesmo odor do suor que ela gostava enquanto estendia-lhe os braços de aconchego para um abraço de amor sublime. Depois disto, Maria das Dores passou vários dias observando Baltazar, seguindo-o disfarçadamente, atravessando sempre à sua frente, fazendo-se notar sempre que possível ao empregado Baltazar. E, durante as noites, rolava sobre o travesseiro macio como se rolasse sobre o corpo de Baltazar sentindo arrepios, o corpo a estremecer e seu coração a palpitar de prazer, como se o pobre e desgraçado empregado do engenho lhe fizesse carinho tocando as partes mais sensíveis do seu corpo e os segredos bem guardados da sua intimidade. Enfim, não aguentou mais. Não tinha razão para aguentar. Quase explodindo por dentro, certo dia, quando o engenho, pela ausência do seu dono e por incapacidade do seu feitor, estava envolto numa pasmaceira sem fim, com D. Euzébia dormindo largadamente, a roncar em sua cama, Maria das Dores desceu pelas barrancas até a beirada do rio sentindo aqueles desejos que a perseguiam. Baltazar pescava distraidamente, como fazia habitualmente nos dias de completo folgar. Com os tormentosos desejos que assaltavam e torturavam seu corpo de forma irracional, decidida, caminhou sorrateiramente pelo pequeno espraiado do rio em direção a Baltazar e, chegando perto, o empurrou pelas costas para dentro d’água. Baltazar tomou verdadeiro susto, ficando com a boca aberta, quando viu Maria das Dores despindo-se rapidamente, deixando à mostra a beleza deliciosa do seu corpo, as curvas perfeitas das ancas, o talhe perfeito do tronco, as coxas roliças e longas, a pele macia e rosada, as carnes tenras, o V da luxúria encoberto por uma leve camada de pêlos negros e brilhantes, os seios saltitantes, lembrando os seios da deusa do amor e da perdição terrena. Maria das Dores não se preocupou com os olhos arregalados de susto de Baltazar. E jogou-se nas águas correntes do rio para entregar-se ao aturdido empregado do engenho, gemendo descontrolada, beijando a boca do negro com paixão e loucura, mordendo-lhe os lábios carnudos. Foram instantes de verdadeira felicidade para Maria das Dores que, de olhos fechados, se derretia toda, balbuciando palavras ininteligíveis que as águas mornas do rio carregaram rapidamente para o mar e que se perderam no vento, no marulhar das ondas que, naquele momento, se levantaram bravias como se quisessem destruir o mundo dos homens e a terra dos deuses. Não custou muito, Maria das Dores começou a sentir tonturas e enjoos, despertando a curiosidade da mãe, que a pôs em confissão. Maria das Dores estava grávida. E o autor do crime, o negro Baltazar. - Que vergonha, meu Deus! – Dizia D. Euzébia para si mesma, com as mãos na cabeça, talvez, para não perder o juízo. - Que vergonha esta menina nos aprontou! Nesses dias de indignação, em que D. Euzébia, gorda e suarenta, espalhada na cama com um pano molhado sobre a testa, maldizia o momento em que aconselhara o marido a permanecer com Baltazar no engenho, Manoel Soares vencia as correntezas do rio Mearim, na volta da sua longa viagem, cansado, porém, feliz. Passara bons momentos em São Luís nos braços da sua amante Joventina. O amor quente e sedutor da mulata, o prendera por vários meses, quase o fazendo esquecer que tinha um engenho e uma família para cuidar. Ao chegar, logo tomou conhecimento do caso desonroso em que se envolvera sua única filha. Na mesma hora, ordenou a Faustino Dorneles, o seu capataz: - Amarre esse preto safado e lhe dê vinte chibatadas. Amanhã verei o que fazer. A voz do fazendeiro soou fria, de forma incontestável, determinada. Amarrado a um tronco que ficava em frente à casa grande do engenho, Baltazar foi chicoteado nas costas durante vinte vezes, mas ele aguentou o suplício com dignidade, sem pedir clemência, sem lamentar, sem derramar uma lágrima. Em suas costas ficou desenhado um estranho mapa sangrento, a comprovar o ódio que Manoel sentia no coração. Ao amanhecer do dia, Manoel Soares embarcou Maria das Dores para São Luís, onde esta passaria a morar com uma tia. O negro Baltazar, porém, precisava sofrer mais ainda, receber uma punição justa pelo seu ato. Precisava sofrer para nunca mais mexer com filha de branco, de homem honrado, de fazendeiro importante e sério. E não perdeu tempo: chamou o feitor e dois trabalhadores, ordenou que vendassem os olhos de Baltazar e iniciaram uma viagem pelo mato bravio da região. Pararam na orla de um campo verdejante, acenderam uma fogueira e puseram um ferro pontiagudo no fogo até que ficasse vermelho. Baltazar estava com as mãos amarradas para trás. Os golpes de açoite que lhe retalhara o corpo doíam-lhe terrivelmente. Sentou-se no chão. Manoel Soares se aproximou da fogueira, pegou o ferro incandescente, ordenou que segurassem Baltazar e, sem qualquer piedade, vazou-lhe os olhos com o ferro que havia retirado da fogueira ardente. O escravo soltou um grito de dor tão aterrador que os animais selvagens da redondeza desembestaram em uma carreira louca, fugindo daquele grito alucinante. Baltazar, não suportou tanto sofrimento, e logo desmaiou. O grupo fez o caminho de volta à casa de engenho, em silêncio, sem Baltazar, que ficara jogado no chão, sozinho e desprotegido dentro do mato para que morresse e fosse devorado pelos animais selvagens. Por ordem do fazendeiro, nunca mais se falou em Maria das Dores e Baltazar naquela casa, ou melhor, naquele engenho. *** Em frente ao que restou da bonita casa-grande do engenho, próxima às barrancas do rio, formou-se o pequeno povoado que vemos agora quando passamos de lancha pelo rio. Vivem ali apenas descendentes de antigos trabalhadores do engenho de Manoel Soares, vítima que foi de terrível assombração que começou a aterrorizá-lo desde alguns dias após ter abandonando Baltazar nas matas perigosas, para que este, desprotegido, cego e amarrado com as mãos para trás, morresse devorado pelos animais da região. (ARIMATEA COELHO)

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Fragilidade

O ser humano precisa aprender a ser. Precisa ser feliz em todos os dias; Precisa amar e descobrir-se Num gesto qualquer de alegria... Precisa erguer os olhos para os céus E contemplar as estrelas e a lua, Sentir a brisa que ondula as flores, E nas pessoas que passam pela rua, A presença de um ser misterioso Que a tudo isto fez tão colorido E nos criou iguais à sua imagem, Nos soprando luz pelas narinas... Sinceramente, falta ver à sua volta Coisas que jamais se imagina, Que não importa o poder do mando Que é frágil como luz de lamparina. Não importa o dinheiro que conquista Nem o orgulho mais discreto,
Nem a arrogância com que se vestem Os poderosos chefes do universo... Neste estar, somos frágeis, pequeninos, Como folhas secas que se vão Jogada de encontro às correntezas Do severo e amargo mar dos desatinos.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Um amigo de infância

No dia seguinte ao da mudança para a nossa pequena casa dos Campos, em Parnaíba, em 1896, toda ela cheirando ainda a cal, a tinta e a barro fresco, ofereceu-me a Natureza, ali, um amigo. Entrava eu no banheiro tosco, próximo ao poço, quando os meus olhos descobriram no chão, no interstício das pedras grosseiras que o calçavam, uma castanha de caju que acabava de rebentar, inchada, no desejo vegetal de ser árvore. Dobrado sobre si mesmo, o caule parecia mais um verme, um caramujo a carregar a sua casca, do que uma planta em eclosão. A castanha guardava, ainda, as duas primeiras folhas unidas e avermelhadas, as quais eram como duas jóias flexíveis que tentassem fugir do seu cofre. - Mamãe, olhe o que eu achei! - gritei, contente, sustendo na concha das mãos curtas e ásperas o mostrengo que ainda sonhava com o sol e com a vida. - Planta, meu filho... Vai plantar... Planta no fundo do quintal, longe da cerca... Precipito-me, feliz, com a minha castanha viva. A trinta ou quarenta metros da casa, estaco. Faço com as mãos uma pequena cova, enterro aí o projeto de árvore, cerco-o de pedaços de tijolo e telha. Rego-o. Protejo-o contra a fome dos pintos e a irreverência das galinhas. Todas as manhãs, ao lavar o rosto, é sobre ele que tomba a água dessa ablução alegre. Acompanho com afeto a multiplicação das suas folhas tenras. Vejo-as mudar de cor, na evolução natural da clorofila. E cada uma, estirada e limpa, é como uma língua verde e móbil, a agradecer-me o cuidado que lhe dispenso, o carinho que lhe voto, a água gostosa que lhe dou.
O meu cajueiro sobe, desenvolve-se, prospera. Eu cresço, mas ele cresce mais rapidamente do que eu. Passado um ano, estamos do mesmo tamanho. Perfilamo-nos um junto do outro, para ver qual é mais alto. É uma árvore adolescente, elegante, graciosa. Quando eu completo doze anos, ele já me sustenta nos seus primeiros galhos. Mais uns meses e vou subindo, experimentando a sua resistência. Ele se balança comigo como um gigante jovem que embalasse nos braços o seu irmãos de leite. Até que, um dia, seguro da sua rijeza hercúlea, não o deixo mais. Promovo-o a mastro do meu navio e, todas as tardes, lhe subo ao galho mais empinado, onde, com o braço esquerdo cingindo o caule forte, de pé, solto, alto e sonoro, o canto melancólico da "Chegança", que é, por esse tempo, a festa popular mais famosa de Parnaíba:Assobe, assobe, gajeiro, Naquele tope real... Para ver se tu avistas, Otolina, Areias de Portugal!
Mão direita aberta sobre os olhos, como quem devassa o horizonte equóreo, mas devassando, na verdade, apenas os quintas vizinhos, as vacas do curral de Dona Páscoa e os jumentos do sr. Antônio Santeiro, eu próprio respondo, com minha voz gritada, que a ventania arrasta para longe, rasgando-a, como uma camisa de som, nas palmas dos coqueiros e nas estacas das cercas velhas, enfeitadas de melão-são-caetano:Alvíssaras meu capitão, Meu capitão-general! Que avistei terras de Espanha. Otolina, Areias de Portugal!A memória fresca, e límpida, reproduz, uma a uma, fielmente, todas as passagens épicas, todas as canções melancólicas e singelas da velha lenda marítima com que o majestoso mulato Benedito Guariba, uma vez por ano, à frente dos seus caboclos improvisados em marujos portugueses, alvoroça as ruas arenosas de Parnaíba. O vento forte, vindo das bandas da Amarração, dá-me a impressão de brisa do oceano largo. O meu camisão branco, de menino da roça, paneja, estalando, como uma bandeira solta. O cajueiro novo, oscilando comigo, dá-me a sensação de um mastro erguido rolando diante de mim, na curva do horizonte, onde o céu e o mar se beijam e misturam, as terras claras de Espanha, e areias de Portugal.Pouco a pouco, a noite vem descendo. Um véu de cinza envolve docemente os coqueiros dos quintais próximos. Os bezerros de Dona Páscoa berram com mais tristeza. As vacas, apartadas deles, respondem com mais saudade. Os jumentos do sr. Antônio Santeiro zurram as cinco vogais e o estribilho "ípsilon", marcando sonoramente as seis horas. Os do sr. Antonio do Monte, ao longe, conferem e confirmam o zurro, o focinho para o alto, olhando o milho de ouro das primeiras estrelas. E eu, gajeiro de uma nau ancorada na terra, desço tristemente do folhudo mastro do meu cajueiro, sonhando com o oceano alto, invejando a vida tormentosa dos marinheiros perdidos, que não tinham, pelo menos, a obrigação de estudar, à luz de um lampião de querosene, a lição do dia seguinte... Aos treze anos da minha idade, e três da sua, separamo-nos, o meu cajueiro e eu. Embarco para o Maranhão, e ele fica. Na hora, porém, de deixar a casa, vou levar-lhe o meu adeus. Abraçando-me ao seu tronco, aperto-o de encontro ao meu peito. A resina transparente e cheirosa corre-lhe do caule ferido. Na ponta dos ramos mais altos abotoam os primeiros cachos de flores miúdas e arroxeadas como pequeninas unhas de crianças com frio. - Adeus, meu cajueiro! Até à volta! Ele não diz nada, e eu me vou embora. Da esquina da rua, olho ainda, por cima da cerca, a sua folha mais alta, pequenino lenço verde agitado em despedida. E estou em S. Luís, homem-menino, lutando pela vida, erijando o corpo no trabalho bruto e fortalecendo a alma no sofrimento, quando recebo uma comprida lata de folha acompanhando uma carta de minha mãe: "Receberás com esta uma pequena lata de doce de caju, em calda. São os primeiros cajus do teu cajueiro. São deliciosos, e ele te manda lembranças..." Há, se bem me lembro, uns versos de Kipling, em que o Oceano, o Vento e a Floresta palestram e blasfemam. E o mais desgraçado dos três é a Floresta, porque, enquanto as ondas e as rajadas percorrem terras e costas, ela, agrilhoada ao solo com as raízes das árvores, braceja, grita, esgrime com os galhos furiosos, e não pode fugir, nem viajar... Recebendo a carta de minha mãe, choro, sozinho. Choro, pela delicadeza da sua idéia. E choro, sobretudo, com inveja do meu cajueiro. Por que não tivera eu, também, raízes como ele, para me não afastar nunca, jamais, da terra em que eu, ignorando que o era, havia sido feliz?
Volto, porém. O meu cajueiro estende, agora, os braços, na ânsia cristã de dar sombra a tudo. A resina corre-lhe do tronco, mas ele se embala, contente, à música dos mesmos ventos amigos. Os seus galhos mais baixos formam cadeiras que oferece às crianças. Tem flores para os insetos faiscantes e frutos de ouro pálido para as pipiras cinzentas. É um cajueiro moço, e robusto. Está em toda a força e em toda a glória ingênua da sua existência vegetal. Um ano mais, e parto novamente. Outra despedida; outro adeus mais surdo, e mais triste: - Adeus, meu cajueiro! O mundo toma-me nos seus braços titânicos, arrepiados de espinhos. Diverte-se comigo como a filha do rei de Brobdingnag com a fragilidade do capitão Guliver. O monstro maltrata-me, fere-me, tortura-me. E eu, quase morto, regresso a Parnaíba, volto a ver minha casa, e a rever o meu amigo. - Meu cajueiro, aqui estou! Mas ele não me conhece mais. Eu estou homem; ele está velho. A enfermidade cava-me o rosto, altera-me a fisionomia, modifica-me o tom da voz. Ele está imenso e escuro. Os seus galhos abraçam coqueiros, afogam laranjeiras que noivam, ou ultrapassam a cerca e vão dar sombra, na rua, às cabras cansadas, aos mendigos sem pouso, às galinhas sem dono... Quero abraçá-lo, e já não posso. Em torno ao seu tronco fizeram um cercado estreito. No cercado imundo, mergulhado na lama, ressona um porco... Ao perfume suave da flor, ao cheiro agreste do fruto, sucederam, em baixo, a vasa e a podridão! - Adeus, meu cajueiro! (Memórias, 1933 Humberto de Campos)