segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Machado de Assis e Arimatea Coelho: dois mestres do conto e três narrativas excepcionais

por: César Oliveira
É fato notável que um povo se faz grande por meio da literatura e filosofia. A alta cultura, diz o filósofo Olavo de Carvalho, faz-se por meio delas. É a partir dessas duas obras do intelecto que o ser humano atinge o mais alto grau de sua capacidade cognitiva. É bastante apenas observar a história de uma nação ou localidade para reconhecer que logo são citados seus mestres da língua e os seus grandes pensadores. Estes dignificam-nas com os seus engenhos talentosos e suas personalidades peculiares, postas acima da média. Irradiam altas reflexões com as quais presenteiam sua gente com sapiência e genialidade. São a expressão de que um povo atingiu maturidade e inteligência, sendo então capaz de fazer brotar de suas entranhas manifestações de grandeza e sabedoria. Roma e as cidades-estados gregas, por exemplo, nos são lembradas por meio dos seus mais nobres e conhecidos homens devotos ao Saber. Entre eles encontram-se nomes célebres tais como Heráclito, Homero, Píndaro, Aristóteles, Platão, Arquimedes, Cícero, Sêneca e Virgílio. Destarte Vitória do Mearim, seguindo a tradição, será lembrada pelas gerações futuras por meio daqueles que, entregando-se à labuta da criação filosófica e artístico-literária, doaram a esta terra um oceano de beleza, conhecimento e criatividade. Vitória do Mearim possui motivos para se orgulhar. De seu solo emergiram muitos que, pela destreza de suas obras, enobrecem-na alçando-a à mãe de literatos que de maneira alguma ficam, em talento, abaixo dos renomados mestres nacionais. Dentre eles se encontram o contista e poeta Paulo Tarso Barros (“O benzedor de espingarda”), o também poeta e contista Agnor Lincoln da Costa (“O velório dos gatos”) e o cronista, contista e poeta Arimatea Leite Coelho (“A Manguda de Flores”). Este último será objeto de nossos comentários. Arimatea Coelho, poeta e contista de talento raro, cheio de lirismo e engenhosas construções linguísticas em sua obra, prova que é possível unir labor intelectual e inspirações constantes, trazendo à luz narrativas deveras bem trabalhadas e encantadoras pela sua beleza singular. O senso de realidade que possui é de tal aspecto minucioso que traz ao mundo das letras os mais ínfimos agir-moral humano para fazer deles o alicerce sobre os quais vai construindo sua linda empresa literária, tais como em “Um caso de catalepsia em Flores”, em que descreve a adúltera Dolores, que se aproveita da inocência e do amor do marido para entregar-se - “apressada e alucinadamente no beco da casa, no fundo do quintal, no chão do galinheiro, no caminho do poço, no quarto da sua casa” - em momentos de infâmia e lascívia a malandros insolentes enquanto seu companheiro Polidoro envelhecia e trabalhava duramente no comércio para sustentá-la. Também, sua descrição objetiva da realidade é decerto notável, o que pode ser visto em “Os barqueiros do Grajaú”, em que conta com riqueza de detalhes o confronto generalizado ocorrido entre aqueles e os moradores de Flores. No primeiro caso nos faz refletir sobre a vida, que nem sempre nos é composta de instantes de conforto e sinceridade, enquanto no segundo imortaliza, em seus escritos, eventos que a memória popular comumente lega ao esquecimento. Três de seus contos, constantes de seu livro a Manguda de Flores, serão aqui comparados a outros três do grande mestre Machado de Assis; assim o leitor, baseando-se no já sabido talento deste, reconhecido e louvado internacionalmente, poderá concluir outrossim pelo talento daquele. O primeiro deles, “O oleiro” em muito se assemelha ao conto “A cartomante” de Machado de Assis. Nos dois o enredo se desenvolve através de um triângulo amoroso. No conto machadiano, Vilela, Camilo e Rita são os personagens que, assim como Quintino, Guilhermina e o Joalheiro de Arimatea, vão compondo um cenário em que o adultério, a falsa amizade, a traição pérfida e o mistério vão se acumulando até um desfecho trágico em ambos os contos. Se autor de Dom Casmurro compõe um fim em que o marido traído tira a vida à mulher e ao amante desta, Arimatea não menos surpreendente descreve um momento em que Guilhermina, após saber que o Joalheiro (que na verdade é um matador-de-aluguel) foi o responsável pela morte do marido fugitivo, cheia de remorso trama uma emboscada, assim como Vilela também o faz a Camilo, e põe termo à vida do Joalheiro. As duas narrativas atraem pela curiosidade que despertam, pelo mistério constante que as compõe e pela descrição brilhante de uma tragédia em que a perfídia é a grande atração. Os prazeres e desejos carnais são, em ambas as narrativas, os responsáveis pelos desfechos infaustos e trágicos. Os dois grandes contistas, como não poderia deixar de ser, utilizam-se de suas aguçadas observações empíricas e de uma criatividade ímpar para transferir à literatura uma realidade palpável que se observa na diária convivência humana. A partir dos mais baixos padrões morais os autores fizeram vir à tona duais narrativas deveras encantadoras, transmutando o que de fato é ruim em algo belo e agradável. Essa capacidade, típica de grandes homens, demonstra a genialidade presente nesses dois contistas aqui abordados. Dando seguimento à análise, hei de comparar aqui os contos “Frei Simão” e “Amor à primeira vista” de Machado e Arimatea respectivamente. Os dois, já não bastasse serem belíssimos, estruturam-se sobre a história de uma paixão repentina e efervescente: o machadiano narra o evento de amor cálido entre Simão e Helena; o de Arimatea a paixão efusiva entre Cristiano e Dulcinéa. Em ambas as narrativas estão contidos os preconceitos, egoísmos e ambições paternas que, intransigentes e autoritárias, sobrepõe-se pela força, pela dissimulação e astúcia ao amor forte e ingênuo existente entre os casais. Simão e Helena, plenos de amor um pelo outro, são impedidos pelo pai daquele que almeja casá-lo com uma “rica herdeira”; enquanto Cristiano e Dulcinéa são contrariados em seus planos amorosos pelo pai desta, um orgulhoso e rico coronel que não aceita a relação afetiva de sua filha por um “pé-rapado”. As ambições materiais impertinentes dos genitores de ambos os casais acabam por abafar e suprimir, tragicamente, o sentimento de amor constante nos personagens mutuamente apaixonados. No fim, enquanto Simão e Helena, afastados pela astúcia, morrem amargurados pela distância entre eles, destino não menos pior tiveram Cristiano e Dulcinéa que, separados pela força, definham-se com o passar do tempo, chegando aquele até mesmo a suicidar-se, tamanha a dor que tivera após ter arrancado de si a mulher intensa e deveras muito amada. Por fim comparamos aqui os contos “As viagens de Tibúrcio”, de Arimatea, e “A chinela turca”, de Machado de Assis. Ambos têm seu clímax fundado em instantes de emoção e de obscuridade: Machado descreve o rapto fulminante do Bacharel Duarte, acusado a princípio de ter roubado uma valiosa e raríssima chinela turca; Arimatea narra a travessia à remo de Lapela à Vitória do Mearim feito por Tibúrcio e seu passageiro desconhecido. Duarte, logo após ser constrangido a escutar o Major Lopo Alves recitar-lhe um drama, adormece depois das primeiras narrativas para “vivenciar” uma aventura de perigos e momentos de tensão quando, perseguido para ser morto, acorda em frente ao Major que então descrevia as últimas palavras de sua obra literária. O Bacharel, que desde as primeiras frases achou-a um tédio, agradeceu ao sono com as seguintes e imortais palavras: “Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio. Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que o melhor drama está no espectador e não no palco”. Já Tibúrcio, cético inflexível, ao enganar o macumbeiro Valdomiro, dizendo-lhe de propósito a hora errada de sua saída para não levar em sua canoa o enteado deste, é surpreendido por um homem que lhe aparece inesperadamente pedindo-lhe uma carona e se prontificando a ajudar-lhe a remar durante a viagem. Saindo do povoado Lapela, quando chegam à Cidade de Vitória do Mearim o desconhecido se despede, momento em que Tibúrcio, vendo o dia ainda começar, decide por dormir um pouco, e mais tarde acorda atônito - com o sol queimando-lhe a face - no porto de Lapela. Se foi uma macumba de Valdomiro ou tratou-se apenas de um sonho, permanecerá sempre o indesvendável enigma. Ambos os contos narram a paixão pela mulher amada dos personagens: Duarte pensava naquela dos “mais finos cabelos louros e os mais pensativos olhos azuis”, e Tibúrcio lembrava saudoso do “corpo moreno da sua mulher, que o esperava para o amor”. Ademais, o mistério é o grande senhor que permeia essas duas narrativas, onde os autores demonstram suas capacidades admiráveis de prender a atenção do leitor, emocioná-lo na leitura e surpreendê-lo em suas expectativas. Tanto Machado quanto Arimatea encantam pela perfeição com que descrevem fatos e pela criatividade com a qual enfeitam suas narrativas; e, como mestres que são, com extrema maestria se utilizam de figuras de estilo, entre as quais belíssimas metáforas, comparações, metonímias, prosopopeias e gradações para enriquecerem em beleza linguística aquilo que já em si é uma obra-prima da imaginação do intelecto. Arimatea, tido aqui tão bom quanto Machado na arte do conto, enobrece sua terra natal com a força de seu talento. Outros de seus belos contos poderiam ser comparados, em graciosidade, aos de escritores famosos de renome internacional, tal como a “Solidão da velha Amância” que, pela agradável e doce narrativa, compara-se em grandeza literária a “Uma árvore de Natal e um casamento” de Dostoiévski. Mas estes três escolhidos, nos dão a prova incontestável da beleza e da grandeza de sua obra, encantável pela incrível síntese que apresenta entre a criatividade farta, a inteligência aguda e a formosura impecável com que dá forma concreta às suas abstrações e traz à tona, linda e ricamente, a imensidão de sua capacidade literária.

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